Paulo Gil
A que horas começa o primeiro set?
Olá! Cheguei! – a voz trovoou entre as nuvens, batendo na porta do guichet e no olhar assarapantado do anjo de turno.
Nome e morada, por favor – perguntou, já burocraticamente refeito.
Deixa-o a entrar – disse Pedro, o capataz, sentado na nuvem mais distante e sem levantar os olhos das Escrituras – É o Paulo!
***
Num instante o céu alvoroçou-se. Na sala dos steinways, Bábá deixou um bolero em suspenso, Marcos fechou o fender sobre um samba de uma nota só e Canelhas adiou a pergunta sobre um acorde do bolero de Sassetti que o intrigava. Paulo foi recebido com tantos abraços e !!!s que deixou cair as baquetas que trazia no bolso do casaco.
Mais longe, Sangareau sorriu e Jean Pierre fez stop no vídeo de Belarmino enquanto, a seu lado, Manuel Jorge pousava o iPad, interrompendo a leitura das notícias, e puxava mais um abraço: Sempre a considerá-lo! E sem interrupções: então, quais são as últimas lá de baixo?
Tudo na mesma, o Benfica perdeu, respondeu Paulo com um sorriso maquiavélico. Manuel Jorge deu um pontapé na tarola mais perto. Cuidado com o material – gritou Pedro, o capataz.
Mas a malta continua a nascer como cogumelos – continuou Paulo numa avalanche em crescendo. Só na última semana ouvi meia dúzia de saxofonistas, 4 trompetistas, 2 trombones, um vibrafone, 3 baterias, 8 contrabaixos, 7 pianos, 2 big bands e – rindo – nenhum guitarrista! Ah! e 33 cantoras, claro… E sabem tudo!
Como no nosso tempo… galhofou Manuel Jorge. O problema é encontrar palcos para pô-los a tocar.
Muitos deles já estão apalavradas para Valado de Frades – informou Paulo.
Este ano há Seixal? – interrogou Mendonça, sentado numa nuvem mais abaixo. Claro, que é que esperavas?, respondeu Paulo.
Vê lá se te fazem o mesmo que a mim no Estoril. – voltou Mendonça – Isto está é para os tipos que não gostam de jazz. Ainda ontem li que vão uns suiços ao Goethe tocar “uma música hipnótica e hipnotizante que vai tornar os jardins num spa ao ar livre”…
Quando as gargalhadas abrandaram, apareceu Rui Cardoso: Oh pá!, estava a ver que nunca mais vinhas! Na nuvem dos saxofones, às voltas com um rico, Jorge Reis riu-se: agora é que acabou o descanso… Discreto como sempre, Nuno Gonçalves deitou o contrabaixo: A secção rítmica já está completa.
E Paulo de repente: E o Villas? Onde é que anda o Villas?
Fala baixo – sussurraram os irmãos Mayer. – O Villas continua a ver se consegue que o Governo Divino lhe aprove os estatutos do Hot Heaven. Não está fácil…
Estás com um ar cansado, atirou-lhe Cardoso. Foi da despedida – contou Paulo, de rosto iluminado – acabámos numa jam, família e amigos, a cantar “I’ll be seeing you in old familiar places…”
Foi bonita a festa, pá – riu-se Marcos.
***
Então o primeiro set nunca mais começa? – perguntou Paulo.
Está atrasado – disse Pedro, tilintando as chaves da porta de entrada.
Ah, ah ah! – gargalhou Paulo – Parece a Praça da Alegria… Estou em casa!
António Curvelo (19 Maio 2022)